terça-feira, 5 de dezembro de 2006

O Patriarca Resignado

Curioso como os feixes de luz solar tornam as coisas bonitas a depender do seu grau de inclinação. A favelização e os feios prédios comerciais em tom pastel passam despercebidos às quatro da tarde, por exemplo. Neste horário o que se sobressai são o céu tomado por um azul em início de amarelecimento e as folhas das árvores em tom verde bandeira. Mas a cidade não pode parar e poucos percebem este fato. Dizem até que a cidade, como um todo, é pouco arborizada. São os olhos de pequenos comerciantes que de verde conhecem apenas as cédulas de um real, e que enxergam mais o cinza das moedas antigas - aquelas emitidas no longínquo ano de 1994. Afinal, sua memória é curtíssima, e mal conseguem lembrar-se das eleições anteriores -. A ordem é jogar o que é velho fora.
“Interna esse velho no asilo, Maria!”. Augusto ouvia isso da boca do genro todos os dias e já estava ficando acostumado a contragosto. Pedro havia se casado com sua filha e desde então morara na casa de Seu Augusto. Hoje, a casa continua registrada no fórum como de propriedade do velho senhor, mas a posse é, de fato, do pequeno-burguês.
Seu Augusto trabalhara muitos anos de sua vida como pedreiro, e a casa onde moram foi construída por ele há muitos anos. Sempre foi um homem econômico, e juntando parte de seu salário mensal, pôde construir seu lar e desenvolver uma pequena loja de materiais de construção. O tempo passou, a loja cresceu, mas Seu Augusto - que nunca fôra bruto -, não embruteceu em meio aos sacos de cimento e às latas de tinta. Continuara a dar valor a um bom baba no fim de semana, ao canto dos já escassos pássaros canoros da manhã, até mesmo à vegetação retorcida e feia da caatinga de onde saíra ainda pequeno. Casou-se com uma mulher que não amava, teve com ela cinco filhos e todo o desgosto que poderia agüentar. Ali sim é que embruteceu e amargurou-se. Mas não durou muito, e Augusto pôde voltar a apreciar o doce das coisas. Margarida morreu no parto de Maria, que acabaria se tornando o segundo desgosto de Augusto.
Respeitou o luto pela morte de sua esposa. “Homem de honra não casa com duas mulheres”, dizia ele. E foi assim. Criou seus filhos através de árduo trabalho e severa abnegação. Naquela época, Feira de Santana ainda era uma cidade pequena e as crianças brincavam de gude nas ruas do centro da cidade, que possuía um forte odor de couro, fruto da grande feira popular do centro, e dos currais do antigo Campo do Gado. Moravam na Brasília, e de lá seus filhos saíam para estudar no Gastão Guimarães, todos os dias.
Maria era a mais nova, e sentia-se culpada pela morte da mãe. Permitia-se a pensar que possuía algo de maligno no corpo, e que isso havia matado sua mãe de alguma forma. Carregou esta culpa em si até o dia em que conheceu Pedro, um rapazito cheio de lábia, que só pensava em levar a pobre moça para a cama mais próxima. Usou-se de uma conversa fiada para levá-la a pensar que não apresentava nenhum mal mortal em seu corpo, apenas o poder de apertar seu coração. A menina, ruborizada, ria, enquanto tomava sorvete com o malandro sem navalha.
Pode-se dizer que ali havia começado o segundo martírio de Augusto. Dissimulado, Pedro conseguiu a confiança do pai de sua namorada, e conseguiu que fosse tratado como um membro antigo da família. Sentava-se à mesa e tinha tanta voz na casa quanto o patriarca. Era de se esperar que desenvolvesse tino comercial, e foi isto mesmo que aconteceu. Sem precisar passar por qualquer curso universitário ou qualquer cargo rasteiro, ele arranjou uma posição de destaque na loja de seu sogro. Assumiu o balcão, depois, com o crescimento da loja, virou gerente. Cuidou-se para não entrar em atritos com Augusto, em âmbito familiar e profissional. Sempre teve ambição de controlar aquele pequenino império comercial, que atendia a um bairro em crescimento constante, e conseguiu, quando Augusto resolveu “abrir espaço para os mais jovens”, como gostava de dizer. O aposentado mal-sabia que além da aposentadoria, assinara também a “carta de humilhação”. Pedro esperou algum tempo para consolidar-se como verdadeiro dono da loja e livrar-se de toda a influência que seu velho sogro exercia perante os funcionários. Quando se sentiu em sua plenitude, passou a incutir Maria da inutilidade de seu pai. Usava-se do argumento de que estava caducando, falando até com mendigos – o que de fato fazia -. “Como é possível ficar falando com esses vagabundos como se fossem pessoas normais? Eles tem de aprender a trabalhar, o trabalho dignifica o homem!”.
Passaram a brigar e a primeira cena que deles foi descrita no texto, passou a repetir-se constantemente. Numa discussão durante o almoço, deu-se a gota d’água. Pedro reclamava de sentir um calor insuportável na cidade, e atribuía a causa disto à falta de árvores na cidade. “Veja bem, os bairros daqui, principalmente os centrais, possuem bastante árvores. Nem todas sombreiam muito, mas elas existem. Faltam plantas na caatinga, isso sim”. Pedro, percebendo que iria perder a discussão se ela realmente começasse, agiu de maneira arrogante, fazendo um drama barato, quase rocambolesco, e acabou por dizer, com lágrimas nos olhos, que deveriam internar mesmo o sogro. Abraçaram-se ele e Maria, enquanto um resignado Augusto dirigia-se para seu quarto. Subiu na cama do pequeno quarto, apoiou-se no guarda-roupas, e pegou sua mala. Arrumou rapidamente as poucas roupas de qualquer jeito dentro da mala, pensando que não deveria ser de todo mal ir para um asilo, mas que fosse o Lar do Irmão Velho, não poderia ser outro. Ouvira falar bem do instituto quando fôra consultar-se no Hospital Dom Pedro II. Um leve problema de coluna, lhe disseram. Mas, não, pensou numa idéia melhor.
Então, dirigiu-se para o banheiro, a fim de barbear-se. Fez a barba e deixou seu bigode vasto e acinzentado, cultivado por anos, para parecer imponente. Depois de lavar o rosto, apareceu na sala, vestido com seu terno de domingo e com sua antiga mala suspensa pela mão direita. “Irei fazer uma viagem para minha terra natal. Juntei parte de minha aposentadoria e devo ficar um mês por lá com meus parentes. Até mais”. E saiu, depois de um abraço rápido na filha e sem falar com o genro. Mentira para eles, afinal, não lhes devia nada senão o desprezo. Na verdade, o que iria fazer era simples. Iria conviver com seus semelhantes, os sem-teto. Então, partiu para o local onde poderia encontrá-los: a praça da Kalilândia.
Andou um pouco, e logo chegou. Assim que avistou os mendigos, acenou-lhes, muitos ali já haviam conversado com ele, e o conheciam de longa data. Para a surpresa deles, Augusto viera para ficar, e mais: dividiria parte das roupas e do dinheiro com os que estavam ali. Logo ganhou a confiança dos que não conhecia e também seu pedaço de papelão para dormir.
Só não contavam com a denúncia de uma moradora senil, que mal sabia se rezava o terço, ou olhava para a rua. Anoitecia no momento da partilha do dinheiro, e a velhota, que estava com seu terço, rezando-o na hora certa, deixou-se olhar para o coreto, achando que era um assalto. Então, como boa cidadã, ligou para a polícia. Então o chefe da delegacia conseguiu a oportunidade que queria. Era um linha-dura, que pretendia acabar com o máximo de sujeira social que via por meio da violência. Assim, preparou uma emboscada no meio da noite, capturando silenciosamente todos os mendigos que estavam no coreto. Foram postos no camburão e levados para longe, para a sombria e decadente Colônia Lopes Rodrigues. Amarrados e amordaçados, apanharam por horas e tiveram seus pertences roubados. Foram deixados nus e levaram choques elétricos. Que não seria aquele lugar senão um matadouro ditatorial? Para contar a história, sobraram apenas os policiais, que, claro, nunca haviam visto qualquer dos mendigos mortos.