segunda-feira, 12 de maio de 2008

A Tropicália do cordel

Por Nelson Oliveira e Paula Carvalho

Franklin Maxado “Nordestino” é baiano de Feira de Santana. Formado em Jornalismo e Direito, é poeta de cordel e xilógrafo. Largou as carreiras jornalística e jurídica para dedicar-se exclusivamente ao cordel. Entre seus folhetos mais famosos estão A Volta do Pavão Misterioso e o Horóscopo das Bichas. Veio a Salvador para participar da mesa "Literatura Baiana Contemporânea: Regionalismo versus Cosmopolitismo", organizada pelo DCE e pelo grupo O Coentro, na Bienal de Arte da UFBa. Ainda pela Bienal, participou de um recital no sábado. Na sexta, chegou mais cedo à Escola de Belas Artes, onde o evento se realizou, especialmente para a entrevista. Sempre consciente do seu papel na realidade literária e cultural do país, falou, com bastante humildade, sobre sua visão atual da literatura de cordel, sua vivência difícil na São Paulo dos anos 70 e sua perspectiva quanto à leitura no Brasil. Tudo isso sem deixar de lado curiosidades relevantes em sua vida, como sua passagem pelo tropicalismo e uma candidatura arrojada.

Como você vê a retratação do regional nas regiões mais urbanizadas?

Eu sou meio suspeito pra falar, porque praticamente me classifico como um escritor dessa questão do regional. Falando como uma pessoa que também estuda o assunto, o regional sempre vai ter sua vez, ainda mais agora com a globalização. E por que isso? Por que se você fizer uma coisa da moda, uma coisa do mundo, todo mundo faz aquilo. Enquanto que a marca do regional é a que fica, é a questão proposta por McLuhan: a aldeia global, em que o que diferencia seu trabalho é justamente a sua marca, a marca da sua cultura. Sintetizando, como o poema de Fernando Pessoa, o rio que passa na minha aldeia é o mais importante, não importa seu tamanho, se ele é caudaloso ou não, é o rio que passa na minha aldeia.

Publicar livros no Brasil é difícil, principalmente pelo aspecto financeiro. O cordel consegue subverter essa dificuldade?

Em termos, consegue. O problema da publicação, hoje - nem vou falar do cordel nem da publicação de livros em geral - é que, de acordo com o aumento da população brasileira, que está crescendo progressivamente, as edições se crescem, crescem aritmeticamente. Não acompanham o aumento da população. Isso quer dizer que o brasileiro está lendo menos. Não é só por causa do preço do livro, pra mim é que o mundo moderno hoje, cheio de atrações, faz o cidadão ficar mais preguiçoso mentalmente. Ele tem a televisão (pretensamente de graça), a Internet. Então, quanto ao livro em si, na proporção do número de habitantes, as tiragens têm diminuído.

Outro ponto é a questão da educação. Eu comecei a estudar e praticamente estava formado em 1964. Discutia-se muito nas universidades (aqui na UFBa também), havia a questão da esquerda, a UNE, tinha muita gente lendo e tal, então o livro era levado mais em conta, era até um instrumento de prestígio. Hoje, para mim, estamos entrando numa cultura audiovisual e a leitura (pelo menos a leitura séria, crítica) está caindo. As pessoas não estão raciocinando, não estão pensando (em termos gerais, claro), e aí a cultura decai. Por exemplo, as letras de música na Bahia, a música popular (sem comentar sobre as músicas de carnaval, de apelo sensitivo, sem partir para a criação de uma peça literária). Antes havia as letras das músicas de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, por exemplo. Construção, mesmo, é uma obra-prima! Hoje vejo uma tendência da música de apelo sensitivo, seja no rock, no axé, no pagode, de mexer, de balançar o corpo...

Você falou sobre a diminuição das tiragens, mas hoje temos a possibilidade de publicação via Internet. O cordel é costumeiramente vendido em cordas, mas ele tem se atualizado? Há autores que publicam e vendem coisas pela grande rede, sem resistências?

Já há poetas que têm até sites. Muitas vezes são também grupos de poetas que se juntam em uma cooperativa, em uma sociedade ou uma associação. Isso muda a linguagem do cordel, os temas. Só estou apontando o fato, não estou dizendo se é bom ou se é ruim, por que as coisas, para continuar a existirem, têm que se atualizar. Cito o exemplo do Rio Grande do Sul, que tem literatura semelhante ao cordel. Eles não chamam de cordel, chamam poesia criolla, mas a base é a mesma, porque veio da Ibéria: dos galegos, dos portugueses e dos espanhóis. Mas não é tão divulgada por que eles pararam, ficaram naquele negócio de cantar “minha prenda”, “o galpão”, “o rancho”, “o churrasco”, “os meus fados”, “o meu pingo”, enfim, ficaram em temas que hoje são nostálgicos. No cordel você também vê temas nostálgicos: “quando chove”, “meu sertão quando chove”...

Mas há também o cordel atualizado e atuante, de denúncia. E às vezes incomoda, como no tempo de Cuíca de Santo Amaro, aqui em Salvador. Eu sempre o via declamar na feira de Água de Meninos ou no Elevador Lacerda. Às vezes ele ia a Feira de Santana, e tinha coisas que incomodavam, né? É claro que o estilo dele é um estilo de chamar a atenção, um estilo jocoso, não era um estilo de jornalista em si, de tratar a coisa jornalisticamente, mas dava o fato, comentava, fazia comentários maliciosos, porque na verdade ele era mais poeta. Então nesse ponto de vista o cordel se atualiza, agora como a Internet possibilita que muita gente publique, e claro, se o sujeito não é analfabeto, ele pode escrever qualquer coisa.

A Internet também possibilitou a muita gente ser publicada, entrar na Internet e botar as suas poesias, que, às vezes (eu não quero ser censor), não têm nada a ver em relação à estrutura do cordel, porque o cordel tem que ter começo meio e fim. Pode ser que um poeta de cordel muito engenhoso faça isso e consiga ter êxito dentro de um público tradicional, que é o popular. De qualquer forma, para ser entendido, vai dar trabalho.

E você, como se encaixa nessa questão de atualização?

Não sou contra, porque na verdade o meu cordel segundo Cantel, que é um professor da Sorbonne, que formou os especialistas em cordel que atuam hoje no Brasil, chegou como um divisor de águas do antigo para o moderno, não só na linguagem com também nos meios de produção, divulgação e comercialização. Claro que tem gente hoje mais avançada do que eu. Eu tô com 65 anos. Tem gente que já fez peleja na Internet, faz cordel em inglês, por causa da demanda de turistas, então o cara quer vender pro turista também. Tudo isso são inovações e facetas novas na literatura de cordel.

Você falou em uma das principais universidades francesas, a Sorbonne. Na própria França há uma literatura semelhante ao cordel, que é a literatura encontrada nos livros da Biblioteca Azul. Comenta um pouco sobre isso.

Foram folhetos e panfletos escritos popularmente, que a censura de Napoleão III recolheu e guardou. Então graças a essa censura a Biblioteca Nacional da França pôde ter uma sessão chamada de Biblioteca Azul porque a maioria desses folhetos é encapada num papel azul. A censura perseguiu muito os franceses, mas eu acredito que o que determinou a morte do cordel na França, na Inglaterra, na Itália, na Alemanha, na Holanda, - não com esse nome cordel, o nome vem de Portugal e Espanha – foi o advento da Revolução Industrial e a fabricação de bens em massa surgiu uma concorrência grande para as horas de lazer da população. Conseqüentemente o poeta ficou sem estímulos de ir adiante.

No Brasil e, principalmente, no nordeste nós passamos por essa fase. Em 1975, quando eu entrei no cordel, muita gente anunciava a morte do cordel. Por exemplo, Roberto Benjamin, grande folclorista brasileiro, e uma série de intelectuais, diziam que o cordel não tinha mais campo, porque já tinha morrido na Europa, que como aqui a Revolução Industrial foi mais tardia, o cordel estava tendo ainda uma sobrevida, que não duraria. Eu comecei no cordel em São Paulo, mais ou menos em 1975, e em São Paulo eu comecei a cantar temas mais sulistas, como o Corinthians, o japonês, o homossexual, o frio, e isso pegou um novo público: o paulista curioso e interessado.

Naturalmente, as xilogravuras que eu fazia para as capas interessavam também a estrangeiros, aos turistas e aos estudiosos também, porque as xilogravuras são apreciadas pelos europeus, principalmente a xilogravura popular, diferente. Isso chamava a atenção.


Como foi a experiência e a repercussão de começar a fazer cordel numa cidade como São Paulo?

A maior repercussão foi quando eu comecei a falar dos sulistas, e também dos nordestinos em São Paulo. Daí a coisa repercutiu no nordeste também e aí o público de cordel deu uma nova atenção ao cordel nascente, não aquele cordel nostálgico e romântico ou de cangaço, mas com novos temas. E depois, quando se espalhou a noticia de que um jornalista, advogado, deixou tudo pra viver a vida de cordel, tomou ainda mais a atenção dos colegas poetas. Nessa época, por volta de 1983, 1984, chegamos a ter Raimundo Santa Helena, um cordelista, candidato à Academia Brasileira de Letras, recebendo quatro votos.

Foi também a época em que me lancei candidato, entre aspas, à presidência da República, com o apoio de Carlos Drummond de Andrade e outros intelectuais, porque o poeta, como representante da cultura e do povo, queria ter vez também. Então, conseqüentemente, eu reivindicava isso, nessa “candidatura de gozação”. Depois saíram as candidaturas de Tancredo Neves e José Sarney. Eu dei um apoio público a Tancredo, mas não deixei de lutar pelas diretas. Me retirei, porque meu lado não era o político. Era apenas um grito, como brasileiro, com intelectual brasileiro, sobre o aspecto da democracia.

Como surgiu a decisão de largar o jornalismo e a advocacia para viver do cordel?

Não foi uma coisa de uma hora pra outra. Eu não sou doido (risos). Eu cheguei em São Paulo em 1972, casado com uma atriz negra baiana, a Nêga Helena, e fui morar num prédio de classe média. Já comecei a sofrer discriminação a partir daí. Muitas vezes ela foi barrada na porta do prédio, não podia subir o elevador. Tudo isso influenciava negativamente o casamento. Lá em São Paulo, eu trabalhei muito, cheguei em épocas de ter três empregos: na Folha, no Diário do Grande ABC e também era freelancer. Quase não tinha tempo para manter um certo padrão de classe média-baixa e isso me deixava nervoso, esgotado. O jornalismo é uma área de muita rotatividade; a Folha todo ano despedia uma série de repórteres pra contratar outros com salário menor, e numa dessas levas eu fui.

Minha mulher era atriz, eu tenho essas aberturas pra comunicação, começamos a ensaiar uma peça sobre Antônio Conselheiro. Na época eu era tropicalista, meu casamento movimentou Feira de Santana, mas pouco se fala na história do tropicalismo sobre experiências no interior. Eu era amigo de Torquato Neto, escrevi em dois dos três números do jornal Flores do Mal, antes de ele suicidar-se. Também conheci o pessoal d’o Pasquim. Resultado: entrei nessa onda de teatro. Já tinha feito umas pontas na Bahia, mas nada sério. Fui me entusiasmando, acabei conhecendo mais nordestinos em São Paulo, principalmente aqueles que tinham fugido da “gloriosa” de 1964, começamos a fazer recitais, e numa dessas conheci um poeta de cordel pernambucano, o Jota Barros. Assim, me entusiasmei também pela leitura de cordéis.

Em 1975, no lançamento do meu livro de poesia moderna, Protesto contra a desuman-idade, Rodolfo Cavalcante – para quem eu já tinha feito uma reportagem no Diário de Notícias sobre cordel –, que também era cordelista, me chamou para a empreitada de vender cordéis para ele. Na época eu achava que o cordel se restringia apenas àquilo que eu já citei: ao nostálgico, ao romântico. Rodolfo me falava do contrário, mas eu não acreditava. Aceitei a proposta dele e passei a vendê-los em São Paulo. Eu era uma espécie de poeta alternativo, que passava as noites vendendo livros em bares, nas praças. Assim eu comecei também a fazer um público com meus cordéis.

A construção do metrô de São Paulo, em 1974 também me deu notoriedade, porque escrevi uma reportagem para Rodolfo sobre o metrô, brincando sobre o paulista virar tatu, andando por debaixo da terra. Até me arrepio (risos). Daí ele tirou uns versos geniais, que citavam minha reportagem também. Isso repercutiu no Nordeste. Daí percebi que Rodolfo tinha razão e decidi fazer um cordel de recriação. Escrevi A Volta do Pavão Misterioso, descrevendo o Pavão como um aeroplano, como o sujeito, o centro das atenções, recriando o folheto do Pavão Misterioso, clássico da literatura de cordel. Aí o Corinthians nunca que ganhava, eu “piquei a marreta”, dizia que tinha um sapo enterrado no Parque São Jorge, que dava azar ao time (risos). Aí o negócio estourou mesmo, os jornais noticiavam tudo isso, e partir daí comecei a aumentar a minha produção.


As letras de Tom Zé também têm estrutura lúdica, jocosa, contam histórias e relatam fatos, como também faz o cordel. O cordel influenciou músicos sertanejos, como Tom Zé?

Tom Zé é meu amigo, gravamos juntos para uma coletânea da Editora Abril. O interessante sobre ele não é ele ser cantor: é ser compositor que canta suas coisas. Eu tenho um grande respeito por Tom Zé, porque ele é também é desses nordestinos que decifrou São Paulo e não foi engolido pela cidade, tanto que sua música São São Paulo é adorada pelos paulistas. Ele tem base de cordel também porque em Irará também tinha cordel, nas feiras. Certamente é uma influência.

Feira de Santana é uma cidade grande, que ainda hoje é marcada pelo comércio, reafirmando seu próprio nome. Hoje em dia, não há mais tantas feiras a céu aberto como antes existia. Você interpreta isso como um baque para a cultura popular da sua cidade?

Sem dúvida. É um grande entrave para a difusão da cultura popular, mas não dá para remar contra a maré. O supermercado, o shopping center são faces dessa mudança. Então, o poeta de cordel nos moldes antigos fica sem chances nessa nova fase. Hoje se pode gravar um CD ou um DVD, com toda uma cenografia, para tentar disputar espaço com outras diversões. Claro que tudo isso precisa de investimento, então o sujeito teria de procurar quem patrocine ou alguma editora que queira publicar. Eu tenho uma antologia publicada pela editora Hedra, que também publicou antologias de outros poetas populares, como Patativa do Assaré e Rodolfo Cavalcante, e tem disponibilizado em várias livrarias, tem sido adotado por escolas. Tem dado certo.

Eu já comentei sobre as maneiras de atualizar os temas do cordel, mas essas novas maneiras de atualizar o cordel no sentido de linguagem, de meio utilizado, às vezes podem fazer você perder o público do cordel, a não ser que esse público já esteja tão elitizado que aceite essa nova linguagem, essa nova apresentação do cordel.


Você acha que o cordel sofre preconceito no meio acadêmico e literário?

Demais, principalmente entre os parnasianos. Eles fazem um soneto, colocam umas palavras bonitas e de repente acham que o cordel não tem valor enquanto produção literária, como se fosse um pastiche ou uma imitação de literatura. Por outro lado, há poetas que têm outra postura. Drummond, por exemplo, que não era exatamente um poeta popular, gostava de cordel. Na época da Abertura (fim da ditadura), ele disse que os poetas populares estavam fazendo reivindicações que os eruditos não tinham coragem de fazer ou não queriam assumir. Ou seja, que alguns deles se omitiam por estarem acomodados ou por estarem sendo favorecidos pelo regime.

Certa vez, numa universidade de Santa Catarina, batendo papo com um professor de Letras, ele me disse “nem olho para cordel e não acho Jorge Amado um escritor”. Com isso, ou me calava, ou brigaríamos. Como existe um ditado em minha terra que diz que “boi na terra dos outros é bezerro”, me calei e preferi apresentar meu trabalho para os estudantes. Há muitos preconceitos: uns por ignorância e outros por discriminação mesmo.

Você é jornalista e cordelista. Como optou por caminhos aparentemente distintos em forma?

Não acho que sejam tão distintos assim. Aliás, o jornalismo me ajudou bastante a fazer cordéis, porque o cordel é como uma grande reportagem. A origem do cordel é a mesma do jornalismo. Só que no cordel a gente utiliza elementos poéticos. Estudando jornalismo, se aprende o que é um nariz de cera (um início de reportagem feito de forma romanceada). O início de um cordel é praticamente um nariz de cera. Não dá pra ser tão objetivo no cordel porque ele tem seu lado poético, tradicional. Aí você vai estar fazendo um jornal em verso. Tenho folhetos jornalísticos, em que a poesia é direta e objetiva pra contar um fato, mas o poeta transcende a realidade. Por isso que quando você conta um caso, você romanceia, para tornar mais agradável, porque às vezes a mentira vende mais do que a verdade.

domingo, 11 de maio de 2008

Preguiça onipotente

Cansado de mexer sopas primordiais, fazer vulcões entrarem em erupção, fazer as placas tectônicas roçarem-se sexualmente, numa dança bastante perigosa para quem se encontra sobre sua superfície, além de comandar as vidas de todos os seres vivos com seus bilhões, zilhões, inúmeros dedos e derrubar garotinhas de janelas, o Deus dos Deuses de todos os Panteões cansou. Disse pro seu assessor que tinha se estressado demais, e como vontade de Deus é regra, porque onipotente, nem quis pensar duas vezes no caso, pra não entrar em parafuso divino. Resolveu que iria destruir a Terra numa data comemorativa mundial. Primeiro de maio! “Dia do trabalho, e eu me aposento do meu trabalho!”. Riu-se da jocosidade da proposta e resolveu tirar uma soneca. Já que ia destruir o mundo, deu-se folga. Queria dormir dias! E como vontade de Deus é regra... acordou dia três de maio. Deus tem o poder de voltar no tempo, mas dá trabalho mover todos os comandados para dias atrás. Preguiçoso, mas com um grande problema em mãos, bradou: “anteontem ou nunca!”