sexta-feira, 6 de abril de 2007

Encíclica número um

O depressivo pressiona a lâmina a seu pulso,
e, morto, vai ao Inferno.
O crente, flagela-se em penitência,
e recebe um presente dos céus.

É a justiça divina,
inquestionável,incólume.
Natal, Quaresma, Páscoa:
a hipocrisia tem seus feriados.
Pequemos o ano todo; vamos ao confessionário.
e não comamos carne na sexta-feira santa.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Brinquedo de Papel Crepom

Queria tomar três caixas de analgésicos. Queria atravessar as ruas rastejando, para que os carros passassem por cima de seu corpo pálido e macilento. Não se importava mais com sua integridade física. Mas estava ali, num banco de praça, com as mãos nas têmporas, pensando em tudo que lhe havia acontecido desde o primeiro dia do ano. Pensou que se rastejasse no cruzamento mais movimentado da cidade seria, no mínimo, um desafiante aos habitantes de sua cidade, que atravessavam todas as ruas, até mesmo as estreitas, onde os meninos jogam bola durante toda a tarde, correndo, apavoradas. Fogem dos veículos, as neuróticas. Mas não era em desobediência civil que sua cabeça estava focada no momento. Na verdade, sim. Suicídio é uma das maiores ações de desobediência. Mas não dava a mínima para isso agora. Não nesse momento.
Tentava lembrar das promessas que lhe foram feitas no dia em que chorou pela primeira vez entre os familiares à beira de uma piscina, num dia de férias. Sabia que não tinham sido cumpridas, mas queria fazer um exercício de auto-comiseração. Sentir-se traído pelos familiares, coitado. Mas, o que se pode esperar das pessoas? Aos dezoito, elas só pensam em sexo, carros do ano e rir de coisas bobas. Aos trinta e oito, nos filhos, nas dívidas e, sexo, só de forma esporádica, em descarga mensal de prazer acumulado. Não são confiáveis. Mas ele lhes deu um voto de confiança. Em vão. A mesma briga, por qualquer motivo pequeno, como, por exemplo, criticar o comportamento sedentário de sua mãe, explodiu em mais uma reação de choro, gritos e direções apressadas no trânsito lento daquela rua de duas faixas. Mal chegou em casa, já estava de saída. Pisoteou furiosamente triste a calçada de pedras portuguesas azuis e brancas que o levavam até a avenida. Não olhou para os lados nenhuma vez. Um conhecido chato – eles sempre aparecem nas piores horas - lhe acenou e gritou. Não respondeu. Cabeça baixa, pensamentos confusos. Tinha vontade de chorar, mas seu sistema nervoso continha-no. Sempre o conteve, por mais que ele quisesse chorar e gritar de pavor. Só lhe permitia extravasar tudo em raiva. A mais pura violência disfarçando a tristeza extrema. Era tão contido que, quando deparou com o tráfego da avenida apressou o passo, assim que pôde, para não ser atropelado. Ali percebeu que, de fato, não queria sumir. Mas queria alguma violência. Mais uma vez, conteve-se.
Sentou-se no banco e ficou numa posição de lótus fajuta por um tempo. Os minutos pareciam levar mais tempo para passar, como acontece sempre que nos apegamos a algo emocionalmente forte. O fluxo de pessoas era razoável naquele corredor entre um monumento que tentava ser pós-moderno e seu banco de madeira. Algumas o olhavam de soslaio, outras de maneira dissimulada. Começara a enumerar os motivos que o faziam deixar sua vida seguir o curso quando resolveu interromper a prática – que julgou infantil e poser - para pegar o Caio Fernando Abreu que levava a tiracolo. Procurou o texto que tinha o nome mais triste entre os agrupados no índice. A Morte dos Girassóis lhe soou triste, entre os quais ainda não havia lido, e ainda lhe trazia familiaridade. Leu, e viu que era um texto sobre não interromper a vida de súbito. Fôra publicado no dia de seu aniversário, em um ano qualquer do passado recente. Daquelas coincidências terrivelmente estarrecedoras. Sentiu frio, mesmo que o termômetro do hospital teimasse a indicar vinte e sete graus de um dia sem vento às cinco da tarde. Estava com as mãos em volta de seus ombros, seu corpo tremia, seus dentes tremelicavam. E o livro estava jogado, de lado. Não conseguia encarar mais aquele homem escutando algo no quarto ao lado através de um copo de vidro. Não podia ver o livro com a mesma naturalidade de antes. Também descobriu em suas leituras uma série de hábitos de escrita que o Caio F. tinha em comum consigo.
A coincidência o perseguia. E, definitivamente, o assustava. Mais do que deveria, talvez. Já tinha sido surpreendido uma quantidade de vezes incalculável por respostas diretas à questionamentos extremamente pessoais. E estas respostas encontravam-se nos lugares mais... surpreendentes, impróprios, nefastos. Nos rostos dos negros da Boca do Rio. No escrito de um caderno velho no ônibus às seis da tarde. Quantas já tinha encontrado e descartado, por pura falta de memória? Agora se odiava por isso. Mais uma vez. E sabia que iria se odiar de novo, mais uns dias depois, por esquecer qualquer outra coisa. Isso era certo. Três coisas lhe faziam sentido agora:

1 – Dwayne estava certo.
2 – “Uma família é como uma arma carregada / Você aponta-a no sentido errado, alguém vai ser morto”.
3 – Precisava de uma casa submarina. Agora.

No fim de tudo, percebeu que estava perdendo espaço para a vida, para a realidade. Estava sufocado. Tudo lhe era indisponível. As linhas: ocupadas, as pessoas: ocupadas, o cheque: sem fundos. As obrigações lhe tiravam o tempo. Tiravam mais o tempo dos outros que o seu. Mas o tempo deles era seu tempo. O vermelho do seu coração de crepom se esvai no gelo do pólo sul.