quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Maquiagem pesada

Lembrava sempre de que na época do carnaval seu coração ficava um pouquinho mais aliviado. Sempre gostou do clima que se instalava nas ruazinhas de sua cidade entre os meses de fevereiro e março. Só durante os dias da festa – e também nas festinhas dos amigos, mas não era a mesma coisa - é que poderia vestir-se da maneira que bem entendesse sem que se importassem com ela. Gostava de se vestir de pirata, ou apenas pôr uma máscara vermelha cheia de purpurina, com uma roupa velha qualquer que usava bastante. Era um daqueles casos - que não parecem, mas são bastante comuns – de pessoas que se fantasiam para serem si mesmas, pelo menos por um dia. E era a primeira vez que contava isso para alguém.
Janaína sempre fora uma garota que não se dava bem com as outras meninas da vizinhança cheia de árvores bem verdes e florzinhas brancas. Um patinho feio. Era tida assim pelas pequenas vaidosas que se entretinham com batons carmesins e bonecas novas, com cabelo loiro bem penteado. Restava-lhe os meninos. Mas na idade em que estavam, uma menina não poderia ser bem vista pelos garotos. Quando tentou se aproximar do clubinho deles foi enxotada com um “Fora, feiosa!”, em uníssono, extremamente veemente.
Queria ter companhia pra brincar, porém era muito diferente das outras crianças, e isso lhe proporcionou conhecer mais um pouquinho de si. Descobriu que era capaz de enganar pessoas com certa facilidade. Teve uma idéia para poder brincar confortavelmente nos dias de sua infância. Utilizou-se de seu pequeno ardil de criança. Tinha de se adequar ao gosto da vizinhança. Pelo menos por enquanto. Então Janaína, de menina que não usava maquiagem nem pra ir à casa da vovó, passou a usar maquiagem todo dia. Mas só em alguns dias por prazer: no carnaval.
E assim se passaram alguns anos na vida daquela menina, que continuava quieta e evasiva na maioria das vezes. Quando era menor saía para brincar e logo que se acabavam os folguedos, voltava para casa, caminhando pelo bulevar, brincando com seu bilboquê. Era assim por todos os dias. Adquiriu hábito de ficar sozinha em casa, escutando os discos de marchinhas que pegava na casa dos avós. Depois, foi tomando gosto por Cartola, Pixinguinha e pelos sambinhas do Chico Buarque.
Crescida, não se utilizava dos mesmos truques de antes. Agora a farsa chamava-se estudar. Poderia ser amiga dos mais estudiosos da sala. Era mais legal. Não precisava mais fingir que gostava de todas aquelas casinhas de bonecas. Ocupava-se agora com alguma coisa mais útil que as conversas que a maior parte das meninas – as mesmas que a evitavam na infância – tinham sobre os melhores beijos da escola. Nunca achou que precisava amar alguém. Pelo menos não ali, naquela cidade – e mal sabia ela que seus longos cabelos negros serviam para distrair um de seus colegas mais próximos, o Eduardo. Por enquanto bastava-lhe a semana do pequeno carnaval da cidade.
Pensava assim, até o dia em que viu na televisão algumas imagens do carnaval de Veneza. Entusiasmou-se com a idéia de baile dos mascarados, sorriu com as gôndolas lotadas de pessoas – e enfeites - e lhe custou não se sentir colombina entre pierrot e arlequim. Era para lá que ela iria, assim que pudesse, estava decidido.
Sua devoção pelas máscaras venezianas fez que ela prestasse vestibular para artes plásticas. Passou pro primeiro semestre, então logo teria de se mudar para a capital, único lugar mais próximo onde tinha o curso. Eduardo a acompanharia para a capital, passou em ciências econômicas. Daí para frente, só eles dois, nada mais dos outros três amigos que lhes faziam companhia nos intervalos entre as aulas. O rapaz comemorara timidamente – para que não percebessem - a possibilidade de ficar ainda mais próximo de sua paixão. E em um lugar em que não se sentiria reprimido pelos olhares dos que o conheciam como um “nerd bunda-mole”. Estava radiante, mas quem precisava saber?
Passavam-se os meses e nada acontecia entre eles. Eduardo ainda não havia se acostumado com a cidade e não percebia progressos na relação deles. Mas para Janaína acontecera uma mudança. Deixara a misantropia de lado e não mentia mais para os outros para sair. Gostava mesmo de Eduardo e de outros amigos de curso. Sentia prazer em conversar com eles, em ir à cafeteria nos fins de tardes tomar uma rodada de capuccino com – agora sim – seus amigos.
E lá estava Eduardo, ouvindo-a contar de sua infância, dos tempos em que ainda não a conhecia. Ouvia atentamente cada palavra que saía de sua boca, tomando cuidado para não se distrair com a beleza da cena que presenciava. Os cabelos de Janaína balançavam tranqüilamente, de acordo com o sopro do vento de fim de tarde no píer onde estavam. Ela seguia contando cada carnaval e cada momento de felicidade que havia passado.
Ele queria dizer que a amava. Abraçá-la e beijá-la. Será que ela aceitaria? Era claro que Eduardo era o mais próximo dela, até mesmo por causa tempos de escola. Ela queria dizer que ia partir logo, que Veneza a esperava, era onde esperava beijar alguém com paixão pela primeira vez. Algum desconhecido com o mesmo amor que ela sentira pelo carnaval. Mas, pensou e desistiu, não sentiu necessidade. Não precisava mais do carnaval como antes. Nunca mais precisou das fantasias para dizer a verdade para ninguém. Mas ainda queria conhecer Veneza, e quem sabe, “conhecer” alguém. Seria seu segredinho. Ficaram por dizer, e nenhum dos dois percebeu que havia algo que o outro queria transmitir. Pouco antes de anoitecer deixaram o local abraçados, como bons amigos. Foram para o apartamento dela. Iam tomar um café, como de costume. Janaína disse que precisava de um banho e pediu que Eduardo a esperasse. Ele assentiu e logo estava sentado no sofá da sala. Viu uma espécie de talão em cima da mesa, bem colorido. Apanhou-no e sobressaltou-se. Era uma passagem para Veneza, junto a uns folhetos que falavam sobre o carnaval de máscaras. Contava sobre como as pessoas faziam qualquer coisa durante a festa e não poderiam descobertas, principalmente nos carnavais da Idade Média. Sentiu em algum lugar de seu coração bobo e inseguroque ia perdê-la. Foi tomado de um desespero infantil e desistiu de Janaína. Pôs os papéis onde achara e esperou que ela chegasse. Sorveu rapidamente o café numa manifestação genuína de desconforto e deixou o apartamento sem muitas palavras. Passou as férias de semestre vivendo profundo desalento em sua cidade natal, enquanto Janaína passava o carnaval em Veneza, sem baile e sem máscara. Fez tanto frio e foi tão desconfortável como nunca havia sido naquela parte do ano. Sua visita a Veneza transformara-se numa visita ao melhor hotel da cidade.
Só se reencontraram na volta das férias. E tudo continuava da mesma forma, externamente. Mas, dentro de cada um deles, tudo se configurara diferente. Um estava amargurado, tentando projetar uma boa imagem, apresentável. A outra, começando a descobrir certos prazeres da vida simples e a se apaixonar pela primeira pessoa que a viu sem maquiagem, mas sem palavras para dizer-lhe.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Joseval ataca de novo

Com desgosto, Joseval Siqueira abriu a carteira e entregou pela janela trinta e cinco reais ao taxista. O motorista agradeceu e arrancou em seu carro amarelo em busca de mais um passageiro. Deixou Joseval plantado no meio da rua, limpando a poeira - levantada pelos pneus de seu táxi - acumulada em seu paletó surrado. Assim que terminou de bater as mãos em seu tórax, caminhou em direção à portaria do prédio antigo que o abrigava desde que se mudara da zona leste. Seu interior era escuro e o mofo revestia as paredes. Os fungos proliferavam-se graças à umidade excessiva do cimento cheio de infilitrações. Não podia se queixar, era o melhor que seu dinheiro poderia pagar.
Subiu as escadas até seu quarto no quinto andar. A primeira coisa que fez ao entrar no cômodo foi ligar seu computador. Mesmo com seu salário de semi-desempregado, mantinha o vício de utilizar a Internet. Seu alvo eram os sites de encontros pessoais. Acessava usando um daqueles provedores que pagam ao usuário. Uma vez conectado, começava a passear por orkut, MySpace, Multiply, FindADate e tudo o que pudesse conectá-lo a outras mulheres, que não a desgostosa Silvinha. E, claro, com o MSN aberto.
Nenhuma mensagem nova. - Estou fodido mesmo - balbuciou em um grunhido difícil de entender. Ainda vadiou por uns momentos, pensando no fracasso da noite com Silvinha. Resolveu tocar uma para uma dessas celebridades de quinta categoria de seu tempo sem glamour.
Um pouco cansado do exercício no banheiro, pegou na geladeira uma coxa abandonada de frango e foi se despindo. Deixou o osso sobre o rádio relógio e foi dormir.

*****

No dia seguinte, fiquei pensando na frustração da noite anterior. só havia aumentado depois da maldita masturbação. que jeito horrível de se acabar uma noite: pensando em fazer sexo com uma big brother. tinha de arranjar alguma pessoa hoje.
Entrei no dating service. Nada ainda. Então tomei uma chuveirada pra tirar o ranço de ontem. Vesti uma cueca limpa. E comecei a procurar uma garota com um perfil menos...Silvinha.
De fato, não consegui. o tipo de gente que usa estes sites é bem joseval & silvinha, pares perfeitos. então, vamos lá. abordei uma tal de mariana ruiva 29. estava online e provavelmente receberia resposta logo.
Tiro e queda. Em uns dois minutos tinha uma mensagem em caixa. " Nossos perfis combinam - odeio quando elas usam esse sorrisinho-pontuação - Também adoro macarrão. Vamos numa cantina italiana?" ao menos ela era direta. Sem complicação.
Vi suas fotos. não era bonita. mas também não era uma silvinha. marcamos às 20 horas e eu contava meu dinheiro que seria gasto. morando sozinho conseguia gastar mais com esse tipo de divertimento, mesmo recebendo pouco.
Dava pra um talharim e um refrigerante. Quem sabe até uma torta holandesa. Confirmei com a rapariga, seja o que deus quiser e tomara que ela escolha uma cantina furreca.
Era um local agradável. E o melhor, barato. Às oito horas eu já estava esperando e cinco minutos depois ela chegou. Pontual, pelo menos. Levantei-me e cumprimentei-a educadamente, como Al Pacino faria. Ela deu um sorriso largo e sentou-se.
Com as pernas ligeiramente abertas. Como Al Pacino faria. Sim, temos muito em comum. Marianaruiva29. Já não era ruiva. Já não devia ter 29 também.
Fui direto.
- Ruiva? não vejo fios que possam dizer isso. Gosta de pintar os cabelos?
- Oh, é verdade. Aquilo no site é meio desatualizado. Na verdade até ajuda. Atrai muitos homens firmes assim como você.
- Uau. Começou elogiando. Me senti como Al Pacino. Agradeci e logo a conversa fluiu agradavelmente, sobre como é ruim levar bolos e sobre toda aquela baboseira de internet. Esperávamos despreocupados pelo talharim.
Chegaram os pratos. Enormes. Novelos e novelos de massa submersa em um molho vermelho e grosso. Vinho tinto. Pão de alho, meu deus, Pão de alho! Estavamos indo muito bem. Ora a quem estou enganando. O que não estaria muito bem com uma cesta cheinha de pão de alho?
Cheguei à conclusão de que o preço cobrado era módico. O prato valia muito mais. Nossa, que local excelente. E mais excelente ainda era o modo que Mariana tratava a comida. Comia devagar, e quanto mais comia, mais abria as pernas, roçando em mim e me olhando de maneira tarada.
Precisva agir como Al Pacino. - Vamos para o meu apartamento. Agora. - Ela gostou da idéia, e sorriu depois de um gole de vinho.
Pedi a conta. Me ofereci pra pagar. Me sentia generoso. É o tipo de sentimento que me pega desprevenido. Ela insistiu em rachar. Ah, uma feminista. Os machistas podem dizer o que quiserem, mas nesse ponto as feministas são demais. Me pegou pelo braço, disse Vamos. Segura. Implacável. Incrível como ao longo da noite ela foi ficando mais bonita. Essa moça, ela é como Al Pacino.
No caminho fui dizendo que minha casa não era legal, que era meio escura e que ela não poderia gostar. Ela insistiu querendo conhecê-la e eu não tive saída. Tinha que ser infalível. Fazê-la não perceber as imperfeições do local. Tarefa difícil. Mas era minha única chance. Vamos lá.
Estávamos no elevador. tudo bem, tudo bem. Tem espelho, ela ficou ajeitando o cabelo, tirando uma salsinha do dente, nem reparou nos palavrões escritos no painel a ponta de chave. passei o braço ao redor dela antes de abrir a porta do apartamento. Mais que um gesto intuitivo, era estratégico. Tentei encobrir a visão dos aposentos com meu corpo.
No fim, não consegui esconder o apartamento. Ela fez que não ligava e foi logo tirando o casaco que cobria seus ombros. Senti que dessa vez a coisa ia sair bem. Abri a janela e sentei-me a cama, tirando minha gravata.
- Não, Joseval. Deixa que eu tiro. - Ela sentou-se ao meu lado na cama e senti-me conquistador como Al Pacino. Deixei que ela atirasse a gravata no chão. Sexy. Puxa, você não tem um abajur? Ela perguntou. Não tinha. Liguei o computador. Pronto, baby. A tela ilumina. Improvisação nas horas dificeis. Como Mc Gyver. Não é Al Pacino, mas ao menos é um cara famoso.
Mariana olhou meio assustada pro computador. Deve ter pensado o quão conquistador barato eu era. Virou-se bruscamente para mim, e acabou chocando seu braço contra minha testa. Seu anel acabou arrancando um pedacinho de pele do supercílio e começoui a sangrar. Ela ficou desesperada, pedindo desculpas e procurando algum algodão, um remédio. Para meu lamento, foi procurar na cômoda.
Ao abrir a primeira gaveta, ao passo que eu implorava para que ela não abrisse, ela achou, desposados de qualquer jeito, o relógio velho e o ossinho da coxa de frango. Gritou, pulando para trás.
Virou pra mim, os olhos brilhando. Joseval, que porra é essa? Ossinho de frango, meu bem. Só um ossinho de frango. Tirei da mão dela, carinhoso, joguei no lixo do banheiro. Todo gentileza. Um gentleman. Um superhero. Ia, heroicamente, salvar o clima. Busquei um vinho pra nós dois. Pus uma música. A tela do pc colaborava, fornecendo uma meia-luz digna de cabaré.
E eu bem queria que ela fosse realmente uma puta, como tinha demonstrado no restaurante, abrindo suas pernas e roçando nervosamente em minha canela. Mais uma vez ela relevou as más condições do meu doce e mofado lar. Talvez estivesse precisando de sexo tanto quanto eu e isso era bom para nós dois. Começamos a nos agarrar, e sem romantismo, ela foi logo descendo seu vestido, revelando estar sem soutien e sem calcinha. A noite era, definitivamente, minha.
Por baixo do vestidinho, uns peitos medianos . Não, Al Pacino não teria peitos assim, mas sejamos francos, a essa altura dos acontecimentos pensar no Al Pacino poderia estragar tudo. Então pensei na Loira que dança tango com o Al Pacino, e de fato, Mariana tinha pernas de dançarina de tango e, melhor, volúpia de dançarina de tango. E eu. Que fazer? Eu apalpava como um ceguinho.
E nossa, como ela se movia, lânguida, seus seios bailando tango em minhas mãos, mas, mais embaixo, em meu colo, o encontro de nossas coxas proporcionava um samba que nenhuma mulata da Sapucaí conseguiria dançar. Pelo menos não na avenida.
Eu mestre-sala. Ela, Porta-bandeira. Porta-bandeira, que trocadilho malicioso isso não daria. E agora, olhos fechados, ela já não via o apartamento, as meias sujas, a louça por lavar, a luz neônica que emanava a tela do computador, sequer me via, devia ver Al Pacino, James Bond, quem quer que habitasse seus sonhos molhados, mas eu via tudo, cada contorção, cada suspiro.
Malditos cupins. Decisivos para o fim da minha breve experiência sexual com Mariana. O que eu recebia do meu provedor de internet não fora suficiente para combater a praga que roía o estrado da minha cama. Agora estava eu, nu, ao chão, com meu ferimento no supercílio estancado, e com uma lasca de madeira na perna, observando a lascívia deslizar porta afora com Mariana, enfurecida, ainda se vestindo.
Moça corajosa, é preciso dizer. Sair por aquele bairro, àquela hora amarrando alças em um vestido que, eu bem sabia, não tinha nada por baixo. Não era muito compreensiva com relação aos cupins mas era corajosa. Não fossem os peitos, poderia ser Al Pacino.