quinta-feira, 15 de março de 2007

Tchau, Tô Indo, Não Vou

em parceria com Aline, a Chinaski ao contrário.


Desceu do ônibus e logo acendeu um cigarro. Seu agasalho não dava conta de aquecer-lhe o tórax o suficiente. A fumaça que soltou pela boca misturou-se a névoa rala e à poluição cinza do escapamento dos veículos. "No Pólo Sul não seria assim" pensava, a cada passo imaginava um branco diferente, mas acabava sendo sempre o mesmo.
Sempre o mesmo. Estava acostumado com isso. Não precisava pensar em muitas coisas ou olhar para muitos lugares para sentir algo comum, trivial. Mas ver brancos tão iguais não lhe trazia uma sensação desconfortável. Era apaziguador.
Paredes limpas, o único lugar impossível de se perder, o único caminho que ele sabia naquela madrugada. Poderia andar mais 50 quarteirões, mas a cidade só tinha 20.
Que seja. Naquela cidade, a distância entre a rodoviária e a casa de seus pais poderia ser considerada grande. Melhor assim, teria de andar mais e demoraria mais a vê-los. Poderia pensar melhor se valeria a pena humilhar-se para conseguir alguns trocados. Se desistisse, não importaria que tivesse de varrer as ruas para voltar. "Minha dignidade vale mais que uns pratos de comida", pensava, tentando dissuadir-se. Mas, quando viu, já estava em frente à casa onde morara por anos.
Sentou na calçada e acendeu mais um cigarro. e depois outro e outro... O céu não mudava de cor, ele não (se) sentia (mais) frio. Levantou e entrou, direto para o quarto, direto para o que chamava de conforto. Abriu todas as gavetas e as esvaziou em sua mochila, não era muito, mas era o suficiente, não era suficiente, mas era convincente.
Algumas roupas rasgadas, outras que nem lhe cabiam. Pelo menos faziam volume. Iria impressioná-los, com certeza. "Ele vai embora de vez!", diriam assustados. Puro engano. Estava mais acuado que um ratinho ileso. Não fora bem sucedido na cidade grande e agora iria fingir. Estava bem, tinha arranjado um emprego num escritório de advocacia. Era isso.
Era isso, dinheiro e menos tempo livre nas mãos, o tipo de conforto que demorou muito tempo para chegar e que ele não largaria tão facilmente como já fez nas milhões de vezes anteriores.
Faria mais um dos melodramas mexicanos quando seus pais o vissem saindo com a mochila. Estava ali para fazer esta confusão e, assim, conseguir conforto financeiro. Conhecia seus pais e sabia que eles acabariam enganados por sua lábia. A sua pose de executivo empregado e sua soberba eram a farsa que poderia montar mais facilmente.
Farsas... É ele sabia que já não agüentaria mais farsas, mas essa era a última. Ou assim ele queria acreditar. Acreditar para tornar real, você sabe como é, e ele já sabia como seriam as 3 horas antes de finalmente sair de casa para sempre.
Ouviu alguns ruídos de panelas sendo retiradas do conforto do armário e das xícaras sendo dispostas à mesa. Sua mãe já havia acordado. Só faltava esperar seu pai levantar-se do sono intranqüilo, que o perseguia desde a briga que fez seu filho deixar a casa escura.
Deitou-se na cama, olhou o céu pela janela, cruzou as mãos na altura do peito, sentia aquela dor, no lugar que supostamente tinha um coração, fazia duas semanas. Às vezes pensava que iria morrer, às vezes passava, às vezes acabava dormindo e acordava cansado demais para qualquer outra coisa.
Era uma dor perseguidora. Começara uma semana depois de chegar aos trancos e barrancos no fim de linha do trem que levava à capital. Ali perto mesmo arrumou uma casa destruída e tentava um emprego. Recusara-se a pensar que a dor era pelo fato de estar, de fato, completamente abandonado, por si mesmo excluído.
Ouviu vozes de seus pais conversando e logo foi em direção à eles, tinha pensado em passar pela porta de saída/entrada direto, mas resolveu esquecer a dor e a covardia. Quase 3 horas de diálogos vazios com seus pais e um “Adeus!” antes de partir.
Conversaram horas à fio e horas à farsa. Sua mãe pedia que voltasse para casa, do jeito mais calmamente interiorano que existia. Desferia os mais sutis golpes verbais. A dor diminuía. Ele sabia que não poderia resistir. Mas continuava com a mentira.
Ao passar pela porta já não lembrava nem da metade de toda a conversa. Foi caminhando até a rodoviária, e depois pegou um ônibus para o aeroporto mais próximo, não que ele fosse sair de lá agora, mas ele queria ver aviões partirem o dia inteiro.
Um... Dois... Aquilo lhe dava paz. A segurança com a qual eles partiam, deixando para trás um rastro congelado de saudades. A segurança que nunca tivera ao sair de casa. A que sempre o acompanhara quando pensava fazer alguma bobagem irremediável.
Acendeu um cigarro e não conseguia mais pensar em nada. E até nem sentiu quando queimou a mão quando o cigarro estava acabando. Não sentiu o tempo passar. Só percebeu quando a ponta de cigarro transformou-se numa mini-lanterna sem serventia. Era noite e estava ali, sentado debaixo de uma árvore, colado à grade que impedia o acesso à pista de vôo, vendo, uma a uma, as partidas dos aviões.

2 comentários:

A czarina das quinquilharias disse...

dark e bem escrito, mas no fim nem sei se ele foi ou ficou...

Raullzito disse...

malditos portões!
bendita segurança...