quinta-feira, 5 de março de 2009

Que onda, que festa de arromba

Remover formatação da seleçãopor Nelson Oliveira e Marcelo Lima

_ Na adolescência e, nos poucos quarteirões que percorríamos a pé, para voltar da escola, um local nos despertava a atenção. Era um pequeno boteco, tão trôpego quanto seus freqüentadores. Por volta das uma da tarde, ocasionalmente víamos roqueiros como nós e alguns mendigos de uma praça próxima, todos distribuídos informalmente por aquele lugar, enchendo a cara. Um homem de meia-idade, no entanto, andava atribulado, ora servindo as mesas, ora indo atender a fila que se formava no mercadinho de que era dono. Sempre concentrado em si mesmo. Só alguns anos depois é que tomamos coragem de entrar ali, incentivados pela leitura de Bukowski – que nos chamaria de borra-botas, se nos conhecesse. Este é um perfil que foi construído ao longo dos anos, de nossas passagens por aquele lugar. A última delas nos reservou uma surpresa: o bar estava sendo reformado.

Em qualquer botequim, eu entro, se houver motivo

_ Não havia nada que nos afastasse daquele boteco. Constatamos isso tão logo apertamos a mão do dono do local, sobre o balcão molhado de cerveja. Gilmar Gama, aquele senhor atribulado, presto se desvelou numa pessoa serena e atenciosa com os clientes. Mas era impossível para nós dedicar maior reflexão sobre esse aspecto, num primeiro momento. Por sobre os ombros de Gilmar era possível observar uma pequena foto dele com um largo sorriso enquanto estava fantasiado... ao lado de Sílvio Santos! “Ah, isso daí foi quando eu participei de um programa de calouros no SBT, cantando minha composição chamada Vendendo Pererecas, cheia de duplo sentido. Até o Sílvio se divertiu muito e cantou comigo. Era meu sonho cantar na TV e acabei participando de três programas”, disse, afirmando não se arrepender de não ter continuado sua carreira. Apesar de ter feito sucesso no programa com uma música jocosa, Gilmar Gama compunha músicas românticas ou sobre o sofrimento do caipira ou do sertanejo.

_ Naquela época o cantor não tinha aberto o bar e nem mesmo morava em Feira de Santana. Saído de Ribeira do Pombal, na Bahia, Gilmar Gama havia ido morar em São Paulo. Depois de ter cantado por diversos bares e restaurantes, sua profissão se tornara apenas um hobby em meio à necessidade de sobrevivência. Chegou a trabalhar numa empresa, mas a rebeldia jovemguardista lhe impelia a largar tudo para que pudesse ser dono de seu nariz. ”Cheguei a trabalhar no ramo de armarinhos, mas logo abri o bar, porque era algo que eu conhecia um pouco mais”, revela, limpando o terreno com experiência, mas sem arrogância. Hoje, quinze anos depois de ter aberto o boteco, Gilmar tem uma clientela fiel ao local e a ele mesmo. De vez em quando, ele ainda canta, “aqui e ali, dando uma canja”.

_ Gilmar Gama nos contou de suas influências musicais apontando para a série de vinis dos ídolos Roberto Carlos e Fagner, colada nas paredes mal pintadas do bar. Aqueles discos faziam parte de uma coleção ainda maior, composta por três mil discos variados. Na primeira vez em que adentramos o bar, percorrendo o caminho por sobre pisos de desenho gasto, não tínhamos percebido aqueles discos todos, até o momento em que Gilmar nos fez direcionar o olhar. Éramos dois embevecidos com a estréia naquele covil de piratas; gruta que extravasava álcool e ar enevoado pela fumaça dos cigarros. A diversidade de objetos no ambiente propiciava uma concorrência para onde olhar que não era bolinho, para recém-iniciados naquele boteco sem nome. Pendurados acima da foto com o apresentador, Gilmar conservava um enorme quadro de um dinossauro gordo provocando um salseiro numa estrada da Suíça, uma guitarra sem cordas e pôsteres dos Ramones, do Led Zeppelin e do Nirvana. “Foi meu filho que trouxe esses cartazes, garotos”, justifica com um sorriso. Pareceu se sentir interrogado com nossos olhares tonteados. Nem precisava, Gilmar. Na outra parede, abaixo de todas aquelas expressões multiplicadas do rei Roberto e de Raimundo Fagner, havia uma série de quadros emoldurados. Nas molduras havia cédulas antigas de dinheiro nacional, fotos da antiga Feira de Santana, anedotas feitas através de fotomontagens de freqüentadores do boteco e pôsteres de cervejas obscuras.

_ Mais que a decoração, o que chamava a atenção no bar eram as pessoas e o que elas faziam por ali. Embora o bar fosse freqüentado por grupos diferentes, cada um deles refletia uma parte da personalidade do versátil Gilmar. Numa de nossas visitas, os clientes do bar estavam embalados por um dueto “pornoirônico” entre Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Lá fora, Gilmar Gama conversava efusivamente com um antigo cliente. A conversa era metalingüística: cerveja, cachaça, hi-fi, bloody mary. Como para provar a qualidade de seu bar (nos dois sentidos possíveis), Gilmar atendia bebendo uma das cervejas que vendia. A seu lado, um senhor de cabelos brancos havia assumido a churrasqueira do bar e assava uns espetinhos, com um copo de pinga nas mãos.

_ Apertados dentro do bar, havia outros clientes compondo aquela paisagem tão curiosa à primeira vista. Acompanhada de seu marido, a filha de um respeitado comunista da cidade jogava num caça-níqueis, já há algumas horas. Homens e mulheres de cerca de vinte anos, que seriam considerados geração perdida pelas velhas cristãs que constantemente passeavam pelo bairro, conversavam descontraídos; aquele líquido amarelo sorvido com inexperiência. Dividiam espaço com a experiência de alcoólatras contemplativos – eles conseguiam a proeza de estarem sempre bêbados e com os copos sempre cheios –, todos solitários, cada um ocupando uma mesa diferente.

_ Tivemos rápido contato com dois deles. Um andarilho, de cabelos brancos e encaracolados, sorriso de Monalisa na face, caminhou até nós sem dificuldade – apesar de estar bebendo há horas e carregar um saco de estopa. Foi diretamente ao assunto com um de nós: “Que cabelo bonito é esse, querido? Venha cortar comigo. Hoje é dia de lua cheia e a física diz que é dia bom”. Rimos juntos, e, depois de alisar o cabelo de um de nós, saiu porta afora, mesmo sorriso secreto. Um outro homem bebia sozinho e conversava sozinho alegremente, emitindo onomatopéias e gargalhando. Levantou-se, escorando-se à mesa, para não levar um tombo. Deixou seu copo cheio na mesa para nos pedir que acendêssemos um cigarro de palha. Depois se empenhou em subir em sua bicicleta, embriagado no ato de equilibrar-se embriagado. Quando conseguiu, pedalou rapidamente e seguiu em linha, como se estivesse sobre uma corda.

_ Em nosso último encontro, para entrevistá-lo, Gilmar estava meio abatido. Talvez porque o bar estivesse vazio. Em meio a uma reforma, ele não estava abrindo o estabelecimento. Saudoso, contou que muitos pais traziam os filhos para conferir o que havia de antigo no seu bar. “Eles nunca viram dinheiro, discos e rádios antigos. Por causa dessas coisas é que meu bar virou referência”. Na cultura de boteco, é comum que o dono do local tenha o nome mais conhecido que o do próprio bar (quando ele é nomeado). Na dúvida se há nome ou não, é: vou ao bar de Gilmar. Sabendo o nome do dono, fica fácil se tornar seu amigo. Não há quem não vá “em Gilmar” e não seja conquistado por ele e por sua gentileza. Gilmar, no estilo tremendão, dá uma justificativa difícil de contrapor: “eu deixo a modéstia de lado e digo mesmo: sou um cara carismático”.

* produzido originalmente para a Revista Lupa, da Facom.

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